Os Jovens Escritores

De jovens para jovens

Ultimo canto para as titânides -2

1. THEA

  Thea respirou fundo e fechou os olhos. A jovem titânide deixou o ar invadir lentamente seus pulmões exaustos enquanto escorregava seus dedos para longe do cabo da seax. Os pedriscos pontiagudos da orla feriam-lhe os joelhos e as pernas, e a brisa enviada por Pontus açoitava-lhe energicamente o rosto, salgando cada pequena laceração. Estava envolta em sangue morno. Um só sentimento. Um só sentimento tomava a garota por inteiro. Nem dor, nem tristeza. Nem orgulho e nem cansaço. Algo que não podia descrever, algo que, nascendo das profundezas de seu âmago, encharcava-lhe o espírito, entorpecia-lhe o corpo e os sentidos, algo que transbordava por cada um de seus poros e pelos recém adquiridos ferimentos. Thea cerrou os punhos e abriu os dois braços num gesto bruto, erguendo-se dos joelhos machucados para confrontar frente a frente o mesmo mar que a amedrontava tanto quando criança. Quis gritar. Quis gritar mais alto que as estrondosas ondas de Pontus. Mais alto que cada um dos trovões que emergiam de Caelum acompanhando seus relâmpagos – sinais da enorme tempestade formando-se no horizonte. Tão alto que todos em Koios, Hyperion, Iapetos e Krios se curvariam a ela por medo e por respeito, fossem eles mortais ou deuses. Mas naquele momento, em riste, diante da fúria de Pontus, já sem forças, tudo que conseguiu foi manter-se em silêncio. Um silêncio pesaroso e grave. O silêncio primordial. Caída sob seus pés jazia o corpo de sua irmã mais velha, Themis, sem vida.

 

***

 

2. T85-3.99

  Eu sinto o cutucão forte no braço direito e abro os olhos desorientada. A midríase é lenta demais e tenho que forçar a visão para reconhecer os traços do X5-4.56 em meio à parca luz ambiente. “T, acorda! Já ‘tá quase na hora,” ele me diz sem tirar os olhos da janela, balançando no ar o relógio de pulso modelo aviador com ponteiros fluorescentes. Relógio velho demais pra alguém tão jovem. “O comboio vai passar por aqui em vinte minutos...” ele me diz. Resmungo uma coisa qualquer.

  X5-4.56 deixa de olhar pela janela empoeirada por um segundo para dar uma boa olhada para minha cara. Retorna logo em seguida sua atenção para a fresta de vidro quebrado que dá a visão da rua. “Você ‘tá um caco”, diz pra mim. Ele continua com a simpatia de sempre. Conto que tive mais um daqueles sonhos estranhos, com tempestades e gente agonizando na sola da minha bota. “Contanto que o cara agonizando não seja eu, ‘tá tudo bem pra mim,” ele me diz. Menina, eu o corrijo, enquanto tiro o equipamento da mochila. Conto pra ele que dessa vez pude ver a cara dela e era uma menina. “Ok. Então... Contanto que não seja VOCÊ agonizando, ‘tá tudo bem pra mim” ele diz. E eu não acho graça nenhuma da piada.

 

***

 

3. X5-4.56

  Nunca comentei isso com a T85-3.99, mas os sonhos esquisitos que ela vem tendo com freqüência me perturbam. Perturbam não porque são esquisitos, mas porque não me lembro mais da última vez em que eu mesmo tive um sonho. Qualquer tipo de sonho. É a mesma sensação que você tem quando acaba de assistir a um filme e, saindo da sala de cinema, não se lembra mais do nome dos personagens, ou do enredo, ou de como tudo terminou. Eu não me lembro de nada. Pago meu ingresso, fecho os olhos, e, quando dou por mim, as luzes já tão acesas e eu ‘tô no hall de saída. Meus olhos tão abertos e não me lembro nem dos créditos. Não me lembro nem se vi ou não os créditos. Droga.

  A gente passa um terço da vida dormindo. Pra não lembrar de nada depois? Bah, esse ingresso é caro demais pra mim. E, pra falar a verdade, já não me lembro muito bem de como eram as coisas antigamente. Nem sei como ainda me lembro das antigas salas de cinema, das antigas exibições em película. Faz tanto tempo. É um puta desperdício pra qualquer um voltar para casa de mãos abanando, no final do dia, sem conseguir se lembrar do que fez depois que saiu de casa. Um puta desperdício.

  Hoje eu não vou voltar pra casa de mãos abanando.

  O guinchar trôpego e esganiçado das rodas dos S91-2.91 os denuncia muito antes que eu consiga avistá-los na esquina pelas lentes de visão noturna do meu AC3. A Demeter Corp. deveria incluir um alvo bem grande na lataria da próxima série desses trambolhos sobre rodas, bem ao lado do logo da empresa, pra fazer jus à reputação de “veículos de transporte de suprimentos com maior índice de exposição da frota”. Facilitariam muito o meu trabalho. Quando alguém do controle de veículos da Demeter comenta sobre “exposição” em algum relatório de “eventualidades” relacionado à frota, ele tá falando de mim.

  X5-“Exposição”-4.56., ao seu dispor.

  Olho de relance para a T85-3.99 e ela me retorna aquele olhar todo particular dela, algo do tipo “já ‘tô pronta antes mesmo de você ter nascido, seu grandessíssimo idiota”. Garota esperta. Não dá pra vacilar no nosso ramo. “Rapidez, precisão e serviço limpo” é o lema da casa. E nas noites de frio, me conforto pensando que sou um dicionário ambulante, completo e revisado, de clichês e frases de efeito para todas as ocasiões. Tá bom, senhoras e senhores, peguem leve. Sem tomates, por favor. Essa foi só pra quebrar o gelo antes do show de verdade começar.

  Aperto o detonador preso ao meu colete explodindo ao mesmo tempo todas as ogivas de PEM carinhosamente plantadas pela T85-3.99 em pontos estratégicos da Rua Sete Dois, cobrindo com precisão toda a área de trânsito dos três S91-2.91. Dou uma última olhada no meu relógio analógico. Prefiro os analógicos – ainda que sejam raridade hoje em dia. PEM-proof™, sabe como é. E salto pela janela, com a T85-3.99 logo atrás de mim.

  Depois do baque inicial das ondas de pulso eletromagnético, o plano é que os sistemas operacionais dos Droids-Motoristas se apaguem e então passem a ser reiniciados automaticamente pela rotina de segurança. É aí que ´tá toda a mágica do nosso trabalho. Antes que o sistema operacional volte a operar de forma plena em cada um deles, nós teremos tido tempo suficiente para saquear todo o comboio. Na prática, é como se cada um desses Droids fechasse os olhos por um tempo e, quando desse por si, já estivesse no hall de saída com os olhos abertos, todas as luzes acesas, o show terminado. Não vão se lembrar nem ao menos se viram ou não os créditos.

E agora os aplausos, por favor.

 

***

(Continua…)

Por Flávia O.

5 comentários:

Um conto de fantasia, bem robusto e nada clichê, gostei.
Espero por mais. :]

Uau, essa historia é bem legal, deve ter dado um trabalhão para escrever xD

Awoke pediu pra eu ler, e gostei do estilo, o de Thea é bem profundo, e tá legal, só ficou umas dúvidas:
1 - o que é seax? Se for algúem, bota em letra maiúscula (mas o que é?)
2 - Tem um trecho de T85-3.99 que ficou meio sem nexo:
" “Contanto que o cara agonizando não seja eu, ‘tá tudo bem pra mim,” ele me diz. Menina, eu o corrijo, enquanto tiro o equipamento da mochila."
Tente mudar esse "menina", pois ficou estranho no texto.
Acho que tirando isso, ficou bem legal. Espero que continue :D

DeepBlueMax

Eu concordo que alguns momentos não ficaram muito claros, mas gostei.
Espero que ela possa explicar essas partes.

Muito bom o texto, embora as partes que DeepBlueMax comentou precisem ser revistas. Achei muito interessante o final do texto, foi bem engraçado o relato do X5-4.56 sobre o que acontece com os Droids.
Parabéns pelo texto =)

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