Era aquele ali. Inquieto, selvagem, indomável. Aquele bem ali.
Havia barulho, gritos, urros e sussurros. E claro, havia gente. Muita gente. Uma inteira multidão sentada numa arquibancada improvisada de madeira e que a cada passo dado em cima desta, parecia que iria desabar, o que fazia todos gelarem.
Seria uma bela queda.
Os meninos ao meu lado riram ao ver um homem extremamente gordo se espremer para sentar em um dos bancos, ao lado de duas menininhas ainda mais espremidas por seu excesso de gordura. Ele tinha seios, e dos grandes.
Rimos.
Riso que não durou muito tempo. Havia chegado a hora. A hora de se tornar homem perante tudo e todos. Ter responsabilidades, mas o melhor era: poder ir a festas e se embebedar.
Dou-lhe um de meus braços se não for isso que meus amigos estavam pensando. Muitas festas, muito vinho, muita cerveja, muita comida e conseqüentemente, muitas mulheres.
Não víamos a hora para que tal dia chegasse.
Pois chegou.
E agora nenhum de nós queria se levantar do banco.
Finalmente havíamos entendido. ‘Não há como voltar’, pensamos. E não havia. Nesse dia, nessa hora, nesse minuto. Não. Não nos tornaríamos apenas homens e sim cavaleiros. Cavaleiros que irão brandir suas espadas, e tirar vidas.
Nesse dia, nessa hora, nesse minuto. Veríamos nossos irmãos sucumbir em sangue. Veríamos o sofrimento daqueles que perdem seus amados. Veríamos o mundo em apenas duas cores: vermelho e preto.
Dever.
‘Sim’. Mas nosso coração gritava ‘Não’.
Honra.
O Forte Mão-de-Machado soou suas trombetas. Aquele era o sinal.
Medo.
Estávamos sendo chamados para a glória. E foi com esse pensamento, essa esperança que levantamos e paramos no meio da arena.
‘Seremos imortais’.
Já somos.
Nossa vida nunca mais foi a mesma, claro. Muito treinamento, muita luta, muitos hematomas e muitos tombos também.
Todo cavaleiros precisa de um cavalo, certo? Mas não um simples cavalo. Eram nossos cavalos que diziam quem éramos, nossa posição social, nosso posto.
E eu, bem, estava destinado a possuí-lo.
Aquele lá. Aquele bem ali. Que me encarava, que fugia das mãos do domador. Que se empinava e dava coices quando alguém o tentava montar. Que tinha olhos negros assassinos de almas. Aquele.
Selvagem. Malvado. Indomável.
Como um dia eu fui. Talvez seja por isso que nossos destinos se cruzaram. Ou talvez, ele apenas gostou de meus olhos e cabelos tão negros quanto os seus. Éramos irmãos, um entendia o outro.
Aproximei-me do ‘Arisco’, como o chamavam. Esse nome não era digno de tal corcel. Não aquele, não o meu corcel.
Ele me encarava, ele sabia. Sabia que seria eu a domá-lo e que estaríamos juntos a todo o momento.
Riram de mim. Gargalharam. ‘Ele não vai conseguir’, disseram entre dentes.
‘E se conseguir, o que ganho?’, olhei desafiadoramente o domador que riu mais uma vez, convicto de sua sabedoria. ‘É seu. Dou-lhe de presente, não precisará me pagar um tostão’, estava tão certo de seu trunfo, pobre alma.
E eu respondi: ‘Feito’.
O domador se arrependeria. Ah, e como se arrependeria.
Comecei minha jornada em sua direção. Os olhos. Olhos cheios de ódio e mágoa que deixavam a qualquer um nervoso. E eu não fui uma exceção.
Meu coração batia tão forte e acelerado que pude ouvi-lo a alto e bom som. Minhas mãos tremiam e o suor molhava minha testa e pescoço. A camisa verde escura e de mangas compridas que usava estava encharcada, havia um mar ali.
Já podia ouvir sua respiração pesada, conseguia cheirá-lo, também suava.
A minha idéia seguinte não foi das melhores. Eu ultrapassei os limites: dei um passo à sua frente.
No próximo segundo estava no chão, com os olhos cobertos pela sombra daquele espírito selvagem e imponente. Meu peito doía. No outro dia, duas marcas de ferraduras poderiam ser encontradas cravadas naquele local.
Riram de novo. ‘Esqueça, menino’. O problema era: não havia menino, havia um homem.
Mas aconteceu algo para a surpresa do tal ‘Arisco’.
‘Não. Ele vai ser meu.’
Eu não desistiria. Não desistiria até ele se render a mim. ‘É meu. É meu. É meu. É meu’. Meu cérebro entoava esse mantra com tamanha intensidade digna de um monge.
Com o Sol do meio-dia rachando meus ombros e com as mãos no peito, levantei-me e retomei minha jornada. Dessa vez, ele não escaparia. Pois se ele queria ser maldoso, eu seria três vezes mais. E eu fui.
O tempo parou. A Terra parou. O Sol parou. Os deuses pararam. Zeus estacionou o universo e deu-nos a sua ampulheta. Não havia pressa. Afinal, a pressa é inimiga da perfeição. Seria perfeito. Todos se lembrariam.
Apontariam-me nas ruas dizendo: ‘É aquele menino cavaleiro que domou o cavalo selvagem’.
Estiquei meu braço em direção de sua crina, ele deu alguns passos para trás, porém eu não recuei. Ele não tinha mais para onde ir. Parou, mas continuou se movendo. Inquieto, como eu estava.
‘É meu. É meu. É meu. É meu.’
‘Será meu. Será meu. Será meu. Será meu.’
Alisava sua brilhante e negra crina. Tão negra quanto meus próprios cabelos. Almas tão singulares e parecidas. Oh sim, Arisco, somos parecidos. E seremos companheiros, pode apostar.
Ele estava se entregando. Finalmente, havia entendido que não havia como lutar. Será meu. Será meu.
Continuo minha pequena e importante jornada. Arisco não reclama quando enrolo meus dedos em sua crina e dou o impulso para montá-lo. Perfeito. Certo. Isso é certo.
Silêncio. Todos se calaram. Onde está aquele riso, aquele sorriso sádico e prepotente, domador? Onde está? Não pensaram que eu chegaria tão longe, não é?
Agora é a hora.
‘Calma, calma. Está tudo bem.’ Eu disse a ele, enquanto olhava para os que zombaram de mim e dava um sorriso cínico. ‘Iá!’ Ele disparou e por um único momento eu achei que ia cair e morrer pisoteado. Mas o destino é lindo. E ele nos uniu.
Não perderia essa chance.
Ele continua a galopar, galopar, galopar... E quando chega a Torre Vigia de Asgaloth, agarro sua crina e faço-o contorná-la, de volta a arena.
E ele corre. E eu vôo.
Quando para, ambos estamos ofegante, Arisco pela corrida e eu pela emoção.
‘E então, domador? A proposta ainda está de pé?’ E ri.
Mais tarde do mesmo dia, eu me arrependi de ter rido, pois a surra que o homem irado me deu ficou marcada nas minhas costas e na história.
Dedico o conto a Célia Scorpioni, minha mãe, não há pessoa que me apóia mais e que me orgulha menos. Obrigada por tudo.
Por Tabata Scorpioni (blog da Tabata)
1 comentários:
Adoro este conto de Tabata, tem um ritmo diferente das histórias comuns.
Gosto muito do estilo dela.
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