Os Jovens Escritores

De jovens para jovens

Mulheres Anjos e Demônios (3)   Sem mais nada para fazer, enquanto me tentava escudar do mundo ruidoso naquela esplanada ventosa nas traseiras de um moderno estabelecimento, acendi um calmo cigarro. Levei três tentativas para o fazer, o que me deu tempo de sobra para contabilizar quantos miseráveis minutos de vida perdera ao todo com este vício. Reclinando-me na cadeira de verga, pude achar um ângulo confortável em que o Sol não me queimava os olhos e me permitia observar, através da superfície envidraçada, o interior do café, perdão, salão de chá. Várias mulheres, na casa dos trinta anos, classe média ou média alta (vulgo burguesas da Nova Era) dialogavam, conspiravam, naquilo que me pareciam ser organizados grupos de espias/detectives particulares.
   “E querida, já viu agora o novo carro do marido da Susete? E ela em casa, sem dinheiro para ir às compras…”
   “ E rica, ouviu dizer que a Carlota vai ter de meter as filhinhas na escola pública? Que desgraça!”
   Desejasse eu naquele momento saber qualquer detalhe sobre um cidadão ou cidadã do seu meio social e bastar-me-iam quinze minutos e duas chávenas de chá de tília para ficar informado.
   Sorri, quase tolamente, enquanto tentava saborear o veneno gasoso que me enchia os pulmões. Entre ataques de tosse e de culpa, livrei-me do rolinho branco que ardia ainda, lançando-o para o chão. Lá dentro, uma das empregadas deitou-me um olhar tão tóxico quanto o meu cigarro, que me apressei a recolher e a depositar num cinzeiro baço em cima da mesa. A porta abriu-se de par em par, atravessando por esta uma rapariga notavelmente jovem, de olhar sério, pele branca e roupa preta típica das empregadas daquele salão de chá.
   - Vai desejar mais alguma coisa?
   A empregada tinha uma expressão agradável e acolhedora, esboçando um meio sorriso que lhe arrebitava as coradas maçãs do rosto
   - Por enquanto não, obrigado. – Ergui a minha chávena para demonstrar que estava ainda cheia de líquido.
   Usualmente, a empregada (Sandra, Sílvia, Susana ou qualquer outro nome começado por S; não me recordava agora) colaborava comigo, conspirando com as clientes de forma a desocupar a esplanada. Posto isto, eu tinha quase sempre o meu lugar de criação e imaginação desocupado e, portanto, perfeito. Mas hoje ela deixou-se ficar a li, a olhar-me curiosa, a boquita vermelha e carnuda entreaberta como quem pondera em quebrar um gelado silêncio
   - É verdade que é escritor?
   Suspendi as palavras que escrevia no meu bloco negro (sim, utilizo tinta branca e uma caneta de aparo em ouro sobre folhas negras, para registar as minhas ideias. Cada qual com as suas peculiaridades).
   - Sim devo ser. Se eu escrevo e se comentam essas senhoras sobre isso, é porque sou, sem margem de dúvidas, escritor.
    - Hum, sempre pensei que para se ser escritor era preciso se ser esperto. – Ela disse isto com uma voz tão delicada e inocente que eu quase nem detectei a ofensa ou a ironia na sua frase. Levantei uma sobrancelha para lhe perguntar o que ela queria dizer com isso. Com um sorriso, ela apontou para o cinzeiro à minha frente. – Fuma. Isso faz mal sabe? – Deixei cair o meu olhar em derrota.
   - É por isso que tento deixar. Mais de cinco mil compostos tóxicos… não sou assim tão louco. Mas os hábitos antigos custam a morrer…
   - Hum… mas esse assunto à parte, o que escreve tanto? – Comecei a suspeitar da excessiva inocência na voz dela.
   - Sobre muita coisa. Sobre a vida, a morte, amor, pecado, família…
   - Hoje em particular? – A cada pergunta a sua postura modificava-se.
   - Mulheres anjo.
   - Como assim?
   Reparei nos seus belos olhos verdes, intensos, que me disseram que aquela empregada era mais do que parecia revelar. As íris palpitavam, como que a serem percorridas por uma energia ancestral e desconhecida; os seus tons brilhantes ondulavam com vida própria, carregados de mistério e inteligência. Havia ali qualquer coisa escondida que ela não me revelava, algum motivo para me inquirir quanto à minha escrita. Também curioso, acenei com a cabeça para o lugar vago à minha frente.
   - Se deseja ouvir a minha explicação, deveria sentar-se. Não tolero audiências desconfortáveis. – Ela assim o fez, cruzando as mãos sobre a mesa enquanto me fitava muito atenta. – Existem dois principais tipos de mulher; e cada mulher possui estas duas dentro de si. Ao conhecer o percurso da literatura verá que cada época ou autor valorizou um tipo particular de personalidade.
   - A mulher anjo, na escrita romântica. O exemplo da pureza, o paradigma do sofrimento calado. Grandes clássicos descrevem diferentes variantes deste ideal. E a mulher demónio em obras um pouco mais recentes. Tolstoi, por exemplo, usa essa mulher muito claramente no conto “O Diabo”, para criticar as mulheres devassas e dadas a prazeres carnais e, consequentemente, infernais. – Ela surpreendeu-me ao falar com uma voz muito séria, entendida e acima de tudo, desprovida de qualquer presunção. Parecia que constatara um simples facto apenas como “Hoje faz Sol.”
   - Sim muito bem. Isso é exactamente o que eu dizia. Pois hoje escrevo sobre a mulher anjo e o quão real esta pode ser.
   - Tenta perceber se mulheres apenas angelicais podem existir; se o anjo pode predominar na personalidade.
   - Tal e qual?
   - Como escreve e pensa sobre o assunto ao mesmo tempo? Discorrer sobre as suas próprias linhas de raciocínio? – Ela tinha uma perspicácia incisiva. Percebi que esta conversa estava para durar; ela fizera o seu plano de questões e iria segui-lo até ver todas as perguntas respondidas. E, um pouco fora do usual, eu tinha prazer em fazê-lo.
   - Algo do género. Já leu Sir Arthur Conan Doyle?
   - Certamente.
   - Então percebe como eu exploro o assunto. Expondo uma corrente de factos que serão analisados ao mais ínfimo detalhe num ponto da narrativa mas revelados apenas noutro mais tarde. Até em deduções lógicas existe espaço para suspense.
   - Já tem alguma conclusão sobre o assunto? – Agora pude ver bem que as suas palavras tinham amargos travos de ironia. Não percebi do que ela troçava.
   - Tenho mais que uma. Mas poderei ser sucinto: encontramo-nos numa sociedade em que a competição natural abrange, mais que nunca, ambos os sexos equalitativamente. Tal como o homem foi sendo um Romeu cada vez mais obstinado, as mulheres têm deixado de serem Julietas superficiais para se tornarem mais agressivas e prontas a lutar por aqui que pretendem. Talvez até manipulando algumas pessoas para que os seus objectivos sejam cumpridos.
   - Segundo essa teoria, não seriam Romeu nem Julieta a morrer mas as suas famílias, assassinadas por uma Julieta dos tempos modernos que lutava para um lugar à sombra da felicidade, a qualquer custo? – Engoli em seco. As minhas palavras, tomadas demasiado a sério, voltavam-se contra mim. – A conclusão a que chega é que apenas a mulher demónio pode actualmente existir com predominância?
   Apesar de empunhar as palavras em riste, de forma realmente agressiva que não correspondia à imagem de uma certa brandura que eu antes recolhera, não cessava de manter um tom de voz suave e de ser muito subtil na forma como arremetia contra as minhas mal apresentadas conclusões.
   - A conclusão a que chego é que nenhuma mulher, nos dias de hoje, se pode dar ao luxo de ser um anjo. Antes, quando as suas funções rondavam meramente o decorativo ou matrimonial, não havia necessidade para a agressividade, para a sedução traiçoeira e… – Ela riu-se, de olhos semi-cerrados misteriosamente. – Que disse eu?
   - Perdoe-me a indiscrição mas… esperava-o mais neutro. Menos macho. – Abri a boca, um pouco chocado, e voltei a fechá-la sem proferir palavra. – Pensava que seria capaz de ver para além do que a História, contada por outros homens, lhe diz.
   - Elucide-me então, minha cara.
   - Assistimos agora a uma forma diferente de mulher anjo e demónio. Antes, para ser uma “femme fatale”, bastaria usar um pouco mais de pintura e um vestido dois centímetros mais curto. Nos dias de hoje, uma mulher dessas tem de combinar sensualidade com sucessos infalíveis, por exemplo, qualquer personagem retirada de um filme “noir”. Não assistimos a uma crescente vaga de mulheres demónio; apenas a uma maior e mais evidente demonstração dessas.
   Ela piscou-me o olho enquanto eu acabava de escrever as suas sábias palavras. Parecia-me irreal que alguém, especialmente uma mulher (não me julguem machista), argumentasse tão bem de forma a destruir a minha opinião previamente formulada. De tal modo que eu transcrevia tudo aquilo que ela me dizia, decidido a englobar, mais tarde, o seu esclarecimento
   - Tem lógica mas… sobre isso eu não me havia ainda debruçado. Vejo o meu erro. Para entender a mulher anjo, deveria ter começado por examinar a sua nemésis.
   - Todos cometem erros. Não se recrimine. Especialmente neste assunto.
   A sua atenção desviou-se para dentro do salão onde uma mulher, que julguei ser sua chefe, a esperava de mão na anca. Ela suspirou enquanto se levantava graciosamente, ágil como um felino.
   - Qualquer problema e coloque as culpas junto com o chá na minha conta.
   - Assim o farei. Volto assim que puder… desenvolva mais a sua escrita no entretanto.
   Ela afastou-se, bamboleando quase imperceptivelmente as ancas. Falando na dualidade da natureza feminina, tentei avaliar a mulher com quem eu tinha falado. A graciosa, gentil e acolhedora empregada versus a sagaz, decidida e até trocista jovem que retaliara os meus raciocínios. Ela tinha algo em si, um charme perigoso, uma sedução pela inteligência, uma racionalidade inebriante, conjugadas com uma estranha e misteriosa beleza… como ela dissera? Ah sim, “femme fatale”.
   Procurei continuar a escrever mas a concentração fugia-me. E, embaraço-me ao admiti-lo, fugia para uma mulher, talvez quinze anos mais nova do que eu
   - Então, sr. Escritor? Reformulou as suas ideias.
   Neste momento, enquanto ela me fitava, encostada à porta, já sem as roupas de trabalho mas com um conjunto negro e um casaco cor de granada, fui assolado pelo receio de que ela conseguisse saber o que me ia pela alma. Ela gargalhou de súbito, sem aparente motivo
   - Não sou telepata, fique descansado. Mas sou boa a estudar as reacções das pessoas e a saber o que estas pensam. Certos movimentos e expressões também. Já decidiu se eu sou um anjo ou um demónio?
   - Pondero na situação.
   - Então já viu o quão ridículo era o seu raciocínio? Que discursar sobre mulheres não leva os homens a lado nenhum? Como escritor, prenda-se àquilo que é justificável ou à pura quimera. Não tente compreender algo que não tem lógica, como as mulheres. – Ela virou costas, enquanto sorria. Chamei-a, gaguejando.
   - Huh, diz quem? – Ela voltou atrás e deu-me um firme aperto e mão.
   - Não deixe que este meu trabalho ou a minha idade o enganem. Sou colega escritora e cronista dos mistérios humanos. Prazer em conhecê-lo.
    Fui apanhado de surpresa com a revelação de “escritora”. Assim ela conseguiu afastar-se muito rapidamente, sem me dar oportunidade de replicar ou de sequer recolher a mão que ela me apertara. Os seus olhos verdes perfuravam-me ainda a mente enquanto eu dizia para mim mesmo “Estúpido, estúpido”. Habituado a conhecer mulheres fúteis, anjos leves e superficiais, não esperara encontrar uma rival de peso. Percebi então do que ela se rira anteriormente. Os nomes anjo e demónio tinham sido mal atribuídos por mim. Eu acabara de conhecer um raro exemplo de uma demónio mal compreendida: uma racionalidade extra-feminina, sem a devassidão geralmente presente na mulher fatal. Dei voltas a tentar lembrar-me do nome de tão “sui generis” personagem. Até que me recordei e sorri. Muito apropriado… traduzido do árabe para o português significa Estrela da Manhã… o mesmo que Vénus. Uma Vénus dos tempos modernos, sem a conotação original de Deusa do Amor. Existem várias formas de enfeitiçar um homem, dependendo da personalidade que se trata. Sem dúvida que eu fora apanhado por uma mulher deusa jovem, a quem eu, se dado a liberdade literária, chamaria Atena, deusa guerreira da Sabedoria. Como eu estava iludido antes; agradeço pela nova visão de colega escritora… Soraya.



Fim.

Escrito por Mariko (Soraya)
Imagem por fTourniri
Espero que goste e comente,
pois o seu comentário é a nossa maior fonte de motivação

NOTA: Este texto surgiu após uma conversa com um amigo meu na qual ele começou por me apelidar de mulher demoníaca, por o derrotar num duelo de argumentação. Segundo ele, apenas mulheres estranhas possuíram uma racionalidade acutilante. Após fazê-lo ver que à mulher demónio poderia apenas corresponder a mulher devassa e libertina, ela reconsiderou. Apelidou-me de Deusa Grega: Artemis, guerreira sem sentimentos e eternamente casta; ou Atena, guerreira e defensora da cidade da sabedoria.
   Pareceu-me uma boa desculpa para desmistificar a mulher anjo/demónio e para assumir a identidade de um escritor, cronista, que se vê a par com uma mulher fora do vulgar, uma mulher que jamais cai na superficialidade.
   Quando ao usar o nome Soraya… não foi presunção. Foi ideia do meu colega. Aliás, algumas das descrições feitas pelo escritor foram ideia dele, depois de achar alguma das minhas um pouco "insípidas". Soraya quer dizer Vénus, se correspondermos “Estrela da Manhã” a cada um dos nomes. Por associação a “deusa grega” (sim, eu sei, Vénus é romana)… Além disso, a maioria das Sorayas que conheço (além de mim mesma) tem esta personalidade. Uma questão de me manter fiel ao que é verificado.

11 comentários:

Só podia ser da Mariko para ser tão bom assim,dispensa comentários.

Ela é uma ótima escritora.
Me fez pensar sobre alguns princípios. :]

Eu não entendi a metade das palavras dessa história. Mas mesmo assim eu gostei =P

Este comentário foi removido pelo autor.

Muito bom, uma crônica profunda e reflexiva que só poderia ser idealizado e produzido desse modo pela Soraya.

Ela utiliza um pouco mais robusta para nós, brasileiros, mas dá para deduzir várias palavras pelo contexto.

Ah, vá lá gente. Agradeço os comentários mas... a linguagem não está nada complicada. Além das pequenas expressões em latim... Não usei uma única palavra complexa no texto. Resmunguem menos e usem mais um dicionário XD

Maav disse... 18/10/09  

Muito bom mesmo... Realmente faz a gente pensar, assim como o Awoke disse.
@Mariko
Para você que é portuguesa, a linguagem pode não estar complicada. Mas já para os brasileiros... Complica um pouco.
Para quem tiver dúvidas, já deixo aqui explicação de umas palavras.
Caneta de Aparo = Caneta de Tinteiro (Sim, daquelas antigas...)
Chávena = Xícara

Obrigado por fornecer ao site mais obras suas :]
Estou agradecido =D

Mais uma obra-prima da Mariko, como esperado uma leitura excelente e com uma idéia a se filosofar =]

gabrielzx disse... 1/11/09  

otima historia a unica pessoa que conheço (que nao seja famosa) e escreve mais que ela sou eu mesmo=p... e como ela disse a linguagem nao esta complicada o vocabulario principalemente o brasileiro esta muito ruim comprem mais livros =D que isso melhora

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