Os Jovens Escritores

De jovens para jovens

UMBRIDEAINSANIDADE

  Lembrava-se de tudo. Exatamente tudo. Mas gostaria de não se lembrar de nada.

  Lembrava-se de como havia chegado lá.

  Lembrava-se que nunca sairia.

  Lembrava-se de seus pais ausentes. O pai empresário sempre trabalhando para sustentar os gastos interplanetários de sua mãe, que, por sua vez, estava sempre em algum motel, com algum amante.

  Lembrava-se do fatídico dia que o pai flagrou a traição da esposa e matou-a, suicidando-se logo em seguida. Enquanto ela ficava escondida embaixo da cama, com medo. A menina viu tudo. Viu o rosto da mãe, deformado pelas pancadas, atingir o chão e banhá-lo de sangue.

  Lembrava-se dos gritos de horror da mulher. Do baque ensurdecedor do taco de beisebol no crânio. Dos dois disparos que o pai deu: um no amante e outro nele mesmo. Não era mais nenhum bebê. Sabia exatamente o que estava acontecendo: estava ficando órfã.

  Lembrava-se do dia que chegou ao orfanato. Todas aquelas crianças pobres e tristes. Era loucura. Deixá-la ali era loucura. Queriam que dormisse numa cama de ferro gasto que rangia e com um colchão tão fino quanto papel, comer um mingau com mais água do que qualquer outra coisa. Não podia suportar uma barbaridade desse tipo. Não ela acostumada com o luxo.

  Lembrava-se de como as outras crianças do orfanato, mais velhas, viviam a atazaná-la e no final, já não mais se importava que falassem do quão fútil sua mãe era ou que nenhum parente a queria.

  Lembrava-se de quando começou a enlouquecer.

  Lembrava-se das vozes e dos rostos em sua cabeça. Ainda estavam lá.

  Lembrava-se que havia uma voz boa e uma ruim, que estava atentando-a e lhe mandando fazer coisas terríveis. E que muitas vezes, por caráter vingativo, ela fazia. Coisas como costurar a boca do maldito cachorro do vizinho, que latia a noite toda e não a deixava dormir.

  Lembrava-se do estopim que a havia mandado para este lugar: outra voz. Uma voz parecida com a de sua falecida mãe. Ela lhe dizia o que iria acontecer. Certa vez, a voz lhe disse que o menino novo ia beijá-la. Ela não podia permitir isso. Havia feito um voto, uma promessa de castidade. Não podia acontecer.

  Lembrava-se de como, sorrateiramente, invadiu o dormitório masculino e fez o que as vozes lhe disseram para fazer. Disseram-lhe para impedi-lo, afinal, ele não era merecedor do afeto dela.

  Lembrava-se do prazer que sentiu ao ver o sedativo fazer efeito. Do prazer que sentiu ao passar a agulha com o fio de náilon pelos lábios do menino, selando-os. O sorriso aflorou em seu rosto. Os olhos brilharam e giraram nas órbitas.

  Lembrava-se de quando uma das irmãs responsáveis pelos órfãos passou pelo dormitório e viu o que acontecia, e com seus gritos, acordou a todos. De como tentaram pará-la, mas a menina não descansaria enquanto não terminasse. Ele merecia.

  Lembrava-se que sentiu algo atingir sua cabeça, da dor aguda e de como acordou: amarrada em uma cama, em um lugar que desconhecia. Era um quarto de pedra, sem janelas ou luz solar, mobiliado apenas com a cama e uma cadeira afastada, na qual um homem vestido inteiramente de branco estava sentado e a encarava de modo inquisidor. Ele lhe deu medo.

  Lembrava-se que o homem lhe fizera várias perguntas e não obteve resposta em nenhuma, ela estava muito ocupada se debatendo e tentando se soltar. E quando ele cansou de falar sozinho, aproximou-se e espetou uma agulha em seu braço, derramando alguma substância sedativa em sua circulação.

  Lembrava-se de quando, depois de alguns meses no sanatório, ela enganou a enfermeira e não tomou o comprimido calmante, tendo plena consciência de tudo. Ela ia se vingar. Já conseguia sentir o gosto doce da vingança.

  Lembrava-se de como nocauteou o enfermeiro que a levava para o quarto e costurou-lhe a boca, apenas para que não gritasse e por puro prazer. E foi rumo ao alojamento médico. Aquele homem vestido de branco ia se arrepender de tê-la amarrado na cama, a mercê de sua boa vontade, ou não.

  Lembrava-se da agulha espetando o braço do homem, dando-lhe um sono longo e pesado. Havia roubado uma agulha e um fio de barbante fino, da enfermaria. Estava feliz por não ter tomado o remédio e por poder costurar a boca daquele que falou demais. Nunca gostou de pessoas que falam demais. Costurou, costurou, costurou. E depois escreveu, com letras de sangue: “Que lhe sirva de lição. Falar menos e pensar mais.”

  Lembrava-se do pânico que se instaurou em todo o prédio, quando acharam o falador, ainda sedado e com os lábios selados permanentemente. Sabiam que havia sido ela e por isso, levaram-na para a Ala Branca. Da onde nunca sairia. Quartos totalmente branco com as paredes estofadas. Ela ria. Gargalhava.

  Lembrava-se de como os outros, utilizaram-se da balbúrdia e fugiram. Rebelaram-se contra os enfermeiros e outros funcionários. Estavam com a paciência esgotada daquele lugar pútrido e infestado de ratos, das pancadas na cabeça e dos insultos. Havia presos perigosos na Ala Branca, que foram avaliados com problemas mentais, e nenhum deles se importou em abrir a cela da menina costureira. Olharam-na pelo vidro na porta, jogada no chão e rindo. Viraram as costas e esqueceram-na.

  Lembrava-se dos gritos de liberdade dos trancafiados e dos lamentos de horror dos que trancafiavam. Era o veneno doce e letal da vingança.

  Lembrava-se de como tudo ficou quieto, certa hora. E não houve som algum depois disso. A costureira não tinha forças para se levantar, andar, falar ou pensar. Toda sua energia havia sido gasta no seu último ato de insanidade. Na sua última costura. Na última vez que segurou uma linha numa agulha e passou pelos lábios de alguém.

  Lembrava-se de tudo, naquele momento. Exatamente tudo.

  A única coisa que não se lembrava era há quanto tempo estava presa naquele prédio destruído, dentro de um quarto branco com paredes estofadas, convivendo com ratos e somente eles, com o corpo atado numa camisa de força. Depois de inúmeras tentativas de suicídio, batia-se nas paredes e nada acontecia. Não conseguia viver. Não conseguia morrer.

  Um brinde, um brinde, senhores! Um brinde à liberdade dos delírios na alma! Um brinde à loucura telúrica que retorce a mente daqueles cuja imaginação é mais humana! Um brinde! Um brinde à insanidade!

Por Tabata Scorpioni (blog da Tabata)

2 comentários:

Anônimo disse... 3/5/12  

Veei, que coisa louca *---*
Nossa, li varios textos aqui, e até o momento, esse foi o meu preferido! Eu me emocionei! Nossa! PERFEITO *-*
Por: StarCrazyBitch/Tumblr

Anônimo disse... 15/5/15  

Gostei bastante do blog, especialmente do texto Um Brinde À Insanidade, achei uma loucura, uma vez que me fez refletir bastante, obrigado.

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